Todos os anos, o dia 27 de Março é marcado pela celebração da mulher cabo-verdiana.
Para comemorar essa data, Nôs Sabor embarcou na viagem de Gildoca – uma das figuras do nosso país que celebra a mulher através da sua arte e dos murais que cria.
“Para mim, ser uma mulher cabo-verdiana é ser determinada, forte e guerreira; é dar sempre um jeito para contornar a situação quando sente que algo está a correr mal”.
É assim que a street artist Gilda Barros, mais conhecida como Gildoca, define a mulher cabo-verdiana e é essa mesma força e determinação que a própria procura espelhar na sua arte. Em conversa com Nôs Sabor, a artista confessa-nos ver essa figura da mulher cabo-verdiana representada na sua mãe: “emigrante desde os seus dezoito anos (…), regressou depois, casou-se, teve filhos,(…) a minha mãe sempre foi o meu pilar, eu a admiro muito, mulher corajosa” Leva os seus ensinamentos para uma área com “mais artistas homens, do que mulheres”, onde a sociedade e o meio em que vive diz “precisar de um exercício mental de cada um” para compreender a importância e o talento da mulher artista em Cabo Verde.
Naquilo que foi um encontro breve numa tarde de Março, a conversa fluiu entre a artista, o seu percurso, a influência de AcidumProject e os seus ídolos, o estado da arte em Cabo Verde e, mais importante, a figura da mulher nesse meio. Mas antes de tudo, conhecemos um pouco de quem é Gildoca.
Gildoca é formada em Design desde 2018, ano em que colocou o primeiro pincel nas paredes de Cabo Verde, inspirada por outros artistas e pelo ambiente de partilha que vivenciou ao longo dos seus anos de faculdade. Sempre na “linha da frente” para enfrentar qualquer desafio, projeto ou atividades ligadas à arte, não perdeu uma única oportunidade para crescer enquanto artista, mulher e pessoa – foi assim que Gildoca conheceu as suas maiores influências.
“Gostava de desenhar tudo, desde copiar personagens de super heróis a fazer retratos. Rabiscava em qualquer lugar, principalmente em jornais ou revistas, nos tempos em que tatuávamos o rosto das pessoas da capa”.
O seu gosto pela arte começa assim, a fazer aquilo que qualquer criança gosta de fazer: divertir-se e ser criativa no seu jeito. A sua vontade de criar e de se expressar através da arte foi acompanhando a artista até aos anos de escola, fundamentais para a história que pinta hoje.
Nas aulas que menos a estimulavam o seu nome em letras de graffiti começava a ganhar cor nos cadernos, imaginando que seria aquilo que viria a fazer anos mais tarde.
Perfeccionista e humilde, é a cor amarela aquela que predomina e faz questão de estar presente nos seus trabalhos, trazendo-a para os dias de hoje. Admite “ainda não possuir um estilo completamente próprio”, que está sempre a aperfeiçoar, tentando ter pinturas com “algum elemento que os faz ligar entre si, seja uma personagem, um detalhe ou mesmo cores”. É nesse processo que se vê feliz por haver um “público específico que a reconhece”, tendo sempre a personagem feminina presente.
Como nos diz, é o sonho, a determinação e a força de uma mulher cabo-verdiana que a move por um meio tão pequeno, onde a maioria dos artistas são homens, e onde acha que “a mentalidade social precisa de ser trabalhada”.
Acredita que a mudança passa por ter que haver “um exercício pessoal”, antes de qualquer outra coisa, para uma mudança de paradigma. Ainda assim, confessa-se preparada para os desafios que uma viagem tão imprevisível como esta lhe proporciona.
Apesar de ouvir desde sempre comentários como “Tu pintas? Mulher sabe pintar?”, Gildoca tenta sempre ver o copo meio cheio, procurando focar-se numa procura interior da sua própria arte e da sua representatividade.
Prova-nos assim, pelos seus temas e as suas obras, a profundidade do que procura fazer e atingir, dizendo-se curiosa por uma outra perspetiva do que é seu por parte do público. Acha interessante a “sensação de estarem abertos a uma viagem sobre os seus pensamentos”.
Entre os projetos que mais a identificam, confessa-nos que o projeto Xalabas reúne aquilo que melhor espelha a sua procura. O tema da Tabanca foi o que guiou Gildoca no projeto, em que nos diz ter procurado criar “um mural que a comunidade se sentisse totalmente conectada com ele”, visto que mais do que um género musical, é uma manifestação religiosa e cultural que precisava ser revisitada e lembrada.
Repleta daquilo que é a essência de Cabo Verde, a cultura e a arte andam de mãos dadas na sua obra, enaltecendo as suas figuras e dando uma visão que diz ser essencialmente de inovação naquilo que cria.
No seu lado mais feminino, Gilda foi perentória em dizer-nos qual era a sua obra que melhor caracteriza a mulher cabo-verdiana nas suas forças, fragilidades, lutas e vitórias: A Mulher e a Lua.
A Mulher e a Lua foi uma obra desenvolvida em Maio de 2020 que representa uma mulher sentada, segurando a Lua na mão.
Uma obra que representa ao mesmo tempo a angústia e os medos da artista num período tão sensível como uma pandemia mundial, mas também “representa a fragilidade e o poder de todas nós, mulheres, ao nos conetarmos através da nossa espiritualidade e força interior”. A obra acaba por ser “uma mistura de energias e pensamentos que pode ter várias leituras e olhares”, fruto de uma reflexão pessoal, mas que tem em si a liberdade de uma interpretação individual.
E é sobre estas várias leituras e olhares que deixamos Gildoca, a artista mulher que nos confessou beber inspiração em figuras como Cesária Évora, Mayra Andrade, Simone Spencer e Lura, outras igualmente mulheres e talentosas. Todas, figuras de um Cabo Verde que se revisita e se enaltece. Figuras de um Cabo Verde feminino, que inspira outras mulheres e celebra o seu dia. Um Cabo Verde que faz parte de nós.